Austrália e a cultura de que todo trabalho é digno



Estou há pouco mais de quatro meses na Austrália e uma coisa chamou a minha atenção de forma muito incisiva: a cultura de que não há trabalho indigno, do qual precisemos ter vergonha. Aqui, todos os serviços são valorizados e remunerados de forma justa.
Para mim, a ideia de que todo trabalho é digno é um tema extremamente importante para trabalharmos com nossas crianças. Por isso fico muito feliz por meu filho viver sua primeira infância em um país onde essa consciência existe desde cedo.
Sabem por que eu digo isso? Porque é impossível não me lembrar de uma notícia que li, cerca de um ano atrás, sobre uma festa realizada por uma escola no Brasil cujo tema era “Se Nada Mais Der Certo”. Os alunos foram fantasiados de quê? De faxineira, gari, entregador de jornal, mecânico, caixa de supermercado e por aí vai. 

Fiquei extremamente chocada com isso na época. Não só pela infelicidade do pensamento dos alunos, mas pela instituição chancelar um absurdo como este e perder a chance de ensinar que não existe o “se nada mais der certo”. Porque todos os empregos merecem respeito.




É evidente que, no Brasil, o pensamento reflete nossa herança escravocrata. Nosso país foi o último do continente americano a abolir a escravidão. Em 13 de maio, completam-se 130 anos da Lei Áurea. Isso não é nada em tempo histórico. Os reflexos estão aí, expostos todos os dias para quem tiver a sensibilidade de ver.
Aqui na Austrália, a colonização aconteceu em outras bases, o que trouxe outros reflexos. Mas a questão do trabalho não passa pela ideia do “se nada mais der certo”. Sim, muitos dos trabalhos que exigem menos qualificação acadêmica ficam com os imigrantes, inclusive brasileiros. Mas também vemos diversos jovens australianos trabalhando como guarda de trânsito, pedreiro, eletricista, motorista de ônibus etc.
E um ponto que vale frisar: por aqui, a remuneração para o que nós nos acostumamos a enxergar como “subempregos” é mais justa. Uma faxineira, por exemplo, cobra no mínimo 30 dólares australianos por hora. Uma manicure cobra em média 40 dólares. As pessoas conseguem se manter com esses empregos e não precisam ter vergonha deles.
No meu primeiro mês aqui, quando estávamos mobiliando a casa, comprei um colchão. O senhor que fez a entrega veio acompanhado de seu filho adolescente, que o ajudava com o serviço. Era sábado de manhã e o garoto estava com o uniforme típico dos trabalhadores aqui: bota de montanhismo, calça cargo, casaco. Ele estava feliz ajudando o pai, ganhando seu dinheiro. 
Em outra ocasião, chamamos um trabalhador para montar nossos móveis. Chegamos a ele por meio de um aplicativo em que as pessoas se oferecem para serviços pontuais, como limpeza e consertos. Steve tinha milhares de avaliações positivas e era chamado de “Mestre Jedi da montagem de móveis”. Ele chegou aqui dirigindo uma BMW. Conversando com ele, percebi que ele vive bem assim. Com vários pequenos serviços por dia, junta um bom salário no fim do mês e garante o sustento dos filhos.
Foram inúmeras as situações como essas que vivenciei desde minha chegada. Mas o que disparou mesmo toda essa reflexão foi quando recebi uma proposta para dar aulas de língua portuguesa num bairro distante, que implicaria custos e uma logística de deslocamento. O valor oferecido para uma hora de aula: 25 dólares australianos. A mesma coisa que uma faxineira ganha.
Confesso que, num primeiro momento, fiquei chocada com a oferta. Do tipo: “como podem oferecer isso para uma professora?”. Mas aí tive o clique: será que esse pensamento de que um trabalho intelectual vale necessariamente mais do que um trabalho físico não seria uma coisa da nossa cultura e não da cultura australiana? 
Por enquanto, tudo o que tenho são impressões. Estou aqui há muito pouco tempo para ser taxativa sobre qualquer aspecto cultural. Mas devo dizer que, de todo modo, fico orgulhosa por meu filho poder vivenciar essa outra realidade. Por ele ver que nossa vizinha de porta é caixa de supermercado e tudo bem. Ela está feliz, divide um apartamento com outros trabalhadores e consegue se manter. Ninguém é melhor ou pior pelo trabalho que faz. E não existe o “se nada mais der certo”. A Austrália tem isso a nos ensinar.
Existem muitos caminhos, muitas possibilidades, e todos têm o seu papel importante na engrenagem. Ensinemos isso aos nossos filhos – mesmo que os preparemos para Harvard.

*Texto originalmente publicado no site Brasileirinhos pelo Mundo, para o qual escrevo regularmente. 

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