Independência das crianças: valor central na Austrália




Quando eu morava nas Filipinas, havia uma família australiana no meu prédio. A garotinha era um pouco mais velha que o meu filho e eles costumavam brincar juntos eventualmente. Notei que, no parquinho, as babás comentavam – em tom de desapontamento – que a Milla não se vestia de forma tão feminina e tinha um ar tomboy (expressão usada no inglês para se referir a uma garota que tenha um visual mais masculinizado). Ela estava sempre de calças leggings, camisetas e tênis, nada de vestidinhos e lacinhos.

Já na época, o comentário me incomodou, porque achei cruel ver que crianças tão pequenas já recebem olhares ávidos por enquadrá-las em caixinhas de como se vestir e como se comportar de acordo com o gênero. Na verdade, tenho para mim que são crianças e, como tais, devem ser livres para brincar com a roupa com que se sentem mais confortáveis. Simples assim.
Foi somente quando me mudei para a Austrália, no início deste ano, que pude compreender que a dimensão cultural daquela situação do parquinho era muito maior do que eu poderia supor. Na realidade, a roupa mais confortável não falava somente de uma preferência pessoal da garotinha australiana. Mais do que isso, falava da importância que o país dá para a autonomia e independência das crianças.
Aqui, meninas vestidas como a Milla nos parquinhos são a regra, e não a exceção. Todas as crianças, na verdade, estão vestidas de forma confortável, aparentemente sem tanta vaidade. Mais que a vaidade, o que é valorizado parece ser a praticidade. A interpretação de que as meninas parecem tomboys passa longe. De fato, observo que sequer é cogitada. 

Para os australianos, é muito importante estimular que a criança seja independente e livre. Isso me fez pensar se a escolha da roupa não reflete um pouco este valor. É muito interessante ir montando o quebra-cabeça cultural de um novo país e perceber como as coisas se conectam.

Autonomia na mesa e na escola
Além do vestuário, outro aspecto me fez perceber a importância que eles dão à autonomia dos pequenos. Quando me mudei e ainda estávamos procurando casa, almoçamos por diversas vezes na praça de alimentação de um shopping center. Lá, eu comecei a perceber que era a única mãe que dava comida na boca do filho, tirando os casos de bebês muito pequenos.

Filipe tinha acabado de completar 3 anos. As mães australianas me olhavam com certo estranhamento, pois eu estava ali sendo desnecessariamente controladora, girando todo o meu almoço em torno dele. As crianças australianas dessa idade já sentam em cadeiras normais (nada de cadeirão!) e comem sua própria comida sozinhas. Vi até um amiguinho do Lipe segurar um cone de comida japonesa e comer na maior naturalidade, sem birra e sem que a mãe ficasse ali pajeando o menino o tempo todo.

Na escola, pude observar ainda um outro ponto. Os professores parecem primar por fortalecer a autoestima das crianças, encorajando-as a tentar fazer as coisas sem ajuda. Existe uma atividade muito valorizada nas pré-escolas que é o chamado show and tell (em tradução literal, mostre e conte). Ela acontece uma vez por semana, quando os pequenos precisam levar um objeto ou um livro e fazer uma apresentação para a turma. Eles vão lá na frente de todos e falam. Trata-se da primeira experiência de falar em público, de se expor sem medo. Penso que isso seja muito importante para o amadurecimento emocional, para dar ferramentas desde cedo para que as crianças se coloquem num mundo de tantas vozes plurais.

Voltando ao universo dos parquinhos, observo aqui que os pais ficam a uma distância maior, deixando os pequenos brincarem mais “soltos”, observando mais de longe mesmo. Eu era aquela mãe que ficava sempre ao lado do filho, vigiando cada descida no escorregador. E aqui, tenho aprendido com os australianos a soltar mais a corda. No começo, confesso, eles me pareceram até meio despreocupados demais. Hoje entendo que é parte desse valor central – autonomia – que eles procuram passar para os filhos.

Australianas: super-mães?
Eu sempre brinco que as mães australianas são um modelo até opressor, do tanto que elas desfilam soberanas empurrando os carrinhos com suas crianças, ao mesmo tempo em que levam um bebê no canguru e carregam sacolas de supermercado. Detalhe: tudo isso estando lindas e divas com suas roupas de ginástica, o que te faz pensar “como ela arruma tempo para se exercitar?”.
Além disso, é preciso lembrar que, na Austrália, a regra é não ter babás em tempo integral. Os preços são muito altos e as babás cobram por hora. Então, em geral, as mães só contratam alguém quando realmente precisam. As famílias também não costumam ter empregadas domésticas. Isso significa que as super-mães australianas cuidam da cria e da casa sozinhas, contando com ajudas pontuais aqui e ali. A pergunta é inevitável: como elas conseguem não enlouquecer? Muitas vezes me senti um fracasso diante dessas mães que, na minha cabeça, eram a imagem da perfeição.
Refletindo agora, enquanto escrevo, penso que talvez elas não conseguissem conciliar tantas coisas caso não contassem com filhos mais independentes. Talvez o estímulo à autonomia dos pequenos em cada atividade seja uma maneira que a sociedade australiana encontrou para que esse modelo fosse possível.
Sim, porque o tempo que você economiza enquanto seu filho come sozinho é o tempo em que você consegue colocar a roupa na máquina ou passar o aspirador na casa. Ao fim do dia, essas microeconomias de tempo resultam num respiro fundamental para as mães. E o mais importante: asseguram que você está criando seus filhos para confiarem em si mesmos, em sua própria capacidade de realizar. Neste sentido, tenho aprendido bastante com a Austrália.

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