Filhos expatriados e o amor pela cultura brasileira
Quem teve filho no exterior vive o desafio de criar uma "third culture kid", como são chamadas as crianças nascidas e/ou criadas numa cultura diferente da dos seus pais. Em geral, são filhos de militares, missionários e membros do serviço exterior, mas há diversos outros grupos que precisam lidar com a questão do pertencimento.
As third culture kids acabam construindo uma identidade própria, que facilita o pertencimento entre eles onde quer que estejam, e essa identidade tem a ver com a ideia de pertencerem a vários lugares e, ao mesmo tempo, a nenhum. É como se o sentido, para eles, estivesse no deslocamento, no espaço-entre. Eu estou lendo um livro bem bacana sobre isso (Third Culture Kids - Growing Up Among Worlds) e em breve vou escrever aqui sobre ele, porque o tema é bem interessante.
O que eu quero escrever hoje, na verdade, é sobre a importância de mantermos presente a cultura brasileira na vida dos nossos filhos, mesmo quando o Brasil é uma abstração a milhas e milhas de distância.
Nós vivemos cercados de cultura. Cultura não é só arte, não é só algo material. Trata-se de toda a teia simbólica que nos rodeia e na qual construímos a nossa identidade. O que faz do Brasil Brasil? Este é um livro do Roberto da Matta que li na universidade e que traz no título uma pergunta bem rica. Sim, porque há os "clichês" da brasilidade, mas tenho certeza de que cada um de nós terá uma resposta. Cada um constrói uma ideia de cultura brasileira de acordo com suas experiências, o local onde cresceu etc.
Eu nasci e cresci em Brasília, um quadradinho no meio do estado do Goiás. Além do universo cultural em construção de uma cidade inventada, nova, soma-se a cultura de todos os estados que fizeram parte dessa jornada. Os mineiros, os goianos, os nordestinos - todos que deixaram suas casas para desbravar o cerrado e construir a nova capital.
Minha família materna faz parte desse grupo. Os Neves Silva deixaram a cidade de Canápolis, no interior da Bahia, em direção ao Centro-Oeste. Levaram no matulão coisas materiais e também imateriais: o sotaque, a baianidade, as comidas favoritas, os hábitos. Tudo isso é cultura. E Brasília foi se fazendo assim, dessa mistura dos matulões de todos os candangos. Assim foi o Brasil, com todos os grupos que se misturaram e se misturam, no passado e no presente. A cultura é essencialmente viva e dinâmica.
Seguindo os êxodos, eu vim parar nas Filipinas. E, quando a gente vive no exterior, bate uma saudade absurda das coisas do Brasil! Eu fico mortificada pelo fato do meu filho não estar vendo de perto todas as coisas que formaram minha identidade e que tocam a minha alma. Ele nasceu em um país asiático do outro lado do mundo e aqui tem passado os primeiros dois anos da vida dele. Naturalmente, vai assimilar muito da cultura filipina e também dessa cultura dos expatriados de que falei no começo do texto.
Mas e a paixão pela cultura brasileira? Como passar para ele? No meu caso, me toca profundamente a chamada cultura popular, com seus saberes, brincares e outras imaterialidades. Sou feita dessa matéria, dos cantos das rezadeiras, dos fuxicos, das modas de viola, do chão pisado numa roda de coco, das saias de chita e sombrinhas de frevo. Isso me constitui. Queria muito que fizesse parte do relicário do Filipe também.
O que eu procuro fazer, em primeiro lugar, é sempre falar português com ele. A língua é cultura. Quero que o som das palavras more nele. Quero que ele conheça as cantigas de roda do Brasil. E que, a partir daí, queira conhecer outras coisas. Outras músicas. Poemas. Livros e histórias sem fim.
Além do idioma, penso que a música é uma excelente porta de entrada. Porque, vejam só, permite atacar pela frente da língua e pela frente da sonoridade! Gosto de mostrar ritmos tipicamente brasileiros, para ele ir se familiarizando. Bom, quem me conhece sabe que fiz parte de um grupo de danças pernambucanas por muitos anos. Frevo, coco, forró, ciranda e maracatu fazem parte do meu DNA. Então, quando me mudei para as Filipinas, trouxe no meu matulão uma sombrinha de frevo, um agogô, um triângulo e uma saia de chita bem boa de dançar coco. A zabumba e a alfaia não couberam na mala, mas estão em Brasília, para sempre que visitarmos a casa da vovó.
Sempre que posso, gosto de tocar com meu filho, para ele conhecer o som e as possibilidades de cada instrumento. Outro recurso que uso são as músicas do Palavra Cantada. Lá tem letras super inteligentes ao ritmo de maracatu, samba reggae e outras sonoridades. O Lipe adora!
Soube também que foi lançado um livro da Turma da Mônica voltado para o folclore brasileiro. Certamente vamos comprar quando formos ao Brasil. Tem tanta coisa bacana para lermos para os nossos pequenos! O Sítio do Picapau Amarelo, por exemplo, é um clássico que sempre funciona. Tem os livros da Clarice Lispector para crianças. Tem a Adriana Falcão. Tem o Ziraldo e seu Menino Maluquinho. Tem a Lygia Bojunga. A Ruth Rocha. Ah, tem tanta coisa boa que não temos desculpas para não alimentar o vínculo com a cultura brasileira.
Eu leio em português para o Filipe, eu canto, eu danço frevo para ele ver. Faço tapioca, pão de queijo, caldinho de feijão. E assim ele vai crescendo tão longe, tão perto do Brasil. Reconhecendo a beleza dos saberes tradicionais, da oralidade, da brincadeira. Este Brasil nos guia onde quer que estejamos. Porque pulsa, porque é vivo. Saímos do Brasil, mas o Brasil nunca sai da gente. Ê, Drummond!
Tudo isso para dizer a vocês, que vivem fora da terrinha: na próxima visita, abasteçam o matulão!
Levem farofa, guaraná, pão de queijo, instrumentos, CDs, filmes, livros, gibis. Levem o Brasil sempre com vocês. Assim nossos pequenos manterão os laços com o nosso país. Não se trata de ufanismo bobo, de cegueira, nacionalismo. É amor. Amor pelo que de melhor nos constitui!
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